Por Rafael Santos do Yahoo! Notícias
A cidade de Altamira na região sudoeste do Pará ganhou o noticiário nacional nos últimos dias por conta de um massacre que deixou 62 mortos e desnudou novamente a crise no sistema penitenciário brasileiros. Novo capítulo da briga entre facções criminosas pelo poder nos presídios, o episódio rendeu cenas de selvageria que ganharam o mundo. A maioria dos detentos – cerca de 120 dos 206 do local – eram presos provisórios que ainda não haviam sido julgados. O levantamento é da Defensoria Pública do Pará e não inclui a situação jurídica dos 62 internos mortos.
Para entender melhor o problema o Yahoo! Notícias conversou com o advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho. Botelho é um dos fundadores do Instituto Direito de Defesa (IDDD) e conselheiro do Human Rights Watch e do Innocence Project no Brasil. Ele falou das causas da superlotação nos presídios, detalhou o perfil do preso brasileiro e apontou medidas que poderiam amenizar o problema.
Yahoo Notícias: Do massacre ao Carandiru, passando por Pedrinhas até a recente tragédia em Altamira o sistema prisional brasileiro tem um longo histórico de violência. Quem são os principais fatores responsáveis por essa matança?
Augusto de Arruda Botelho: Precisamos voltar um pouco no tempo. Não dá para comparar acontecimentos de 15 anos atrás com o que acontece hoje. Tivemos no passado na década de 1980 e 1990 rebeliões causadas por más condições e reinvindicações de presos que não foram atendidas. Atualmente as rebeliões são muito mais ligadas a disputas de poder entre facções criminosas que dominam o sistema penitenciário brasileiro.
Mas por trás disso temos o próprio formato do sistema de justiça criminal brasileiro. Um exemplo típico é o preso que não tem benefícios da lei analisados em tempo hábil. O detento cumpre um sexto de pena e faz os pedidos de progressão para o regime semiaberto, por exemplo, e esse pedido demora anos para ter uma resposta. Obviamente isso gera um sentimento de revolta e isso pode ser sentido no cotidiano do sistema prisional.
Yahoo Notícias: Por quais motivos tanta gente segue presa no Brasil sem julgamento?
Augusto de Arruda Botelho: São vários fatores. O ponto número um é que o Brasil prende muito e prende mal. O ponto dois é que temos um número elevadíssimo de presos provisórios que são aqueles presos que não tiveram condenação. Cerca de 35% dos presos no Brasil são pessoas que não foram condenadas ainda. Existem soluções mais baratas e eficazes para combater e punir crimes, é preciso analisar caso a caso.
Yahoo Notícias: Quais soluções seriam mais baratas e eficazes para o problema do sistema prisional?
Augusto de Arruda Botelho: Algumas delas já vem sendo adotadas. A principal, na minha opinião, é a audiência de custódia. Esse é o principal avanço civilizatório na justiça criminal nas últimas décadas. É um mecanismo para verificar, de preferência até 24 horas depois da prisão, se aquela pessoa precisa cumprir pena em regime fechado ou não. E economiza milhões para o Estado. Cada preso que deixa de aguardar na prisão o julgamento economiza em média R$ 3 mil por mês para o Estado de São Paulo, por exemplo. Existe o estigma de que audiência de custódia coloca criminosos na rua. Isso é uma mentira absoluta e quem replica isso nunca leu um estudo sobre tema.
Yahoo Notícias: O senhor é um dos grandes entusiastas das audiências de custódia. Recentemente ela foi criticada pelo presidente. Explique para uma pessoa leiga como funciona realmente esse mecanismo jurídico?
Augusto de Arruda Botelho: Vamos imaginar que uma pessoa é presa por tráfico de drogas. O entendimento no momento da prisão foi que ele era um traficante. Em São Paulo poderia demorar dois, três ou até seis meses até que esse preso tivesse uma audiência com um juiz. E o juiz poderia, na audiência, concluir que esse é um caso de um usuário e não de tráfico, e colocaria ele em liberdade. Quem vai devolver esses meses para essa pessoa que ficou presa injustamente e desnecessariamente?
O que a audiência de custódia determina é que se antecipe para até 24 horas do momento da prisão o contato pessoal entre o detido e juiz. Assim o juiz pode verificar se o preso foi maltratado ou sofreu algum tipo de tortura na abordagem policial – infelizmente isso ainda é comum no nosso país – e analisar, por meio de perguntas específicas, se aquela pessoa precisa responder ao processo presa ou não.
Ele é primário? Tem bons antecedentes? Praticou um crime sem violência? Então é natural que possa responder o processo solto. A pessoa é reincidente? Tem vários agravantes? Então vai responder o processo preso.
O que a audiência de custódia faz é antecipar essa análise pessoal do juiz com o preso para saber se ele precisa responder o processo preso ou não. Não é um momento para o juiz determinar se ela é culpada ou inocente.
Yahoo Notícias: O ministro Gilmar Mendes [do STF] fez questão de prestar solidariedade às famílias dos presos mortos em Altamira. Já o presidente Jair Bolsonaro se limitou a dizer que deveriam perguntar sobre as vítimas dos presos que morreram. São duas visões bem distintas do problema. Qual tipo de pensamento predomina no sistema judicial brasileiro?
Augusto de Arruda Botelho: Infelizmente é o pensamento punitivista. Isso vem aumentando porque o Judiciário, influenciado equivocadamente pela opinião pública, continua entendendo que a melhor resposta ao crime é a punição pura e simples. Essa declaração do presidente é extremamente infeliz porque muitos dos presos em Altamira sequer tinham sido julgados. Como se pode falar em vítimas dos presos mortos se existiam muitos que sequer haviam sido julgados? Esse tipo de generalização é extremamente perigosa.
Yahoo Notícias: Neste ano o governo de São Paulo anunciou a intenção de privatizar presídios. Qual a sua opinião sobre a medida?
Augusto de Arruda Botelho: Eu sou contra a privatização de presídios por um motivo bem simples. A privatização pressupõe o lucro. Não vejo nada de errado em privatizar uma série de setores da economia pública. Não vejo problema na privatização. Mas lucrar com presídios significa pressupor o aumento do número de presos. É uma lógica de hotel. Se eu não tiver hóspedes, não vou ter receita. Lucrar com o aumento de número de presos é antagônica à política de desencarceramento que defendo.
Yahoo Notícias: A maioria dos especialistas repete que o sistema prisional brasileiro está em crise faz alguns anos? Existe solução?
Augusto de Arruda Botelho: Entendo que, além da audiência de custódia, nós poderíamos aplicar uma lei extremamente bem-feita e cuidadosa que é a que prevê as medidas cautelares alternativas à prisão como prisão domiciliar, monitoramento eletrônico e proibição de frequentar certos lugares. Curiosamente essa lei “não pegou”. No Brasil temos leis que pegam e que não pegam. A lei das medidas cautelares não pegou. Os juízes não aplicam…
Yahoo Notícias: O código penal brasileiro é eficiente? Precisaria ser reformado?
Augusto de Arruda Botelho: O código penal brasileiro é bom. Não precisamos de leis novas. Se aplicarmos corretamente as leis que já temos daríamos conta do recado.
O texto reproduz trechos de reportagem publicado originalmente no Yahoo! Notícias em 05/08/2019.
Foto: reprodução de imagem de Robson Martins/AP Photo