Relativizar a gravidade do teor das conversas entre promotores da Lava Jato é relativizar a pequena corrupção

A afirmação que faço a seguir é, confesso, bastante superficial, mas não por isso ela deixa de ser muito verdadeira: há pessoas más por todas as partes. Mais ainda, há pessoas boas que se perdem no meio do caminho. Assim, há maus advogados, maus médicos, juízes e economistas. No Ministério Público não poderia ser diferente, há maus promotores.

A recente divulgação de conversas entre procuradores da República, mais especificamente da força-tarefa da Lava Jato, mais do que nos indignar, deve nos entristecer.

É inegável a importância da Lava Jato na história brasileira. Com seus erros e acertos, e com seus muitos – alguns ainda não descobertos – abusos, fato é que ela descortinou uma corrupção endêmica em nosso país. E muito se deve ao trabalho desses mesmos procuradores que hoje são vítimas (sim, houve um crime com a invasão de seus celulares) da divulgação de suas conversas privadas. Vejam, o crime está no acesso a tais informações, e não em sua divulgação.

E o que essas novas conversas divulgadas nos mostraram? Expuseram funcionários públicos – e, com isso, toda a carga de deveres institucionais, legais e morais que eles têm – planejando a constituição de uma empresa com fim de obter lucro com palestras e congressos.

Primeiro, é importante que se diga que não é ilegal promover e participar de palestras, inclusive recebendo por elas. O entendimento atual do Conselho Nacional de Justiça, pelo menos, é esse. Mas o que vimos nas conversas divulgadas é muito mais do que isso.

Melhor então irmos por partes: as conversas nos mostram, sem sombra de dúvidas, o receio que esses procuradores tinham de ser, no mínimo, mal interpretados. Por isso mesmo, a absurda e vergonhosa opção de abrirem uma empresa em nome de um laranja. Sim, colocar uma empresa em nome da sua mulher, de seu filho, ou em nome do borracheiro da esquina com intuito de esconder o real proprietário dessa empresa é, no português menos formal, “alaranjar”. Mais do que isso, os procuradores combinaram de fazer um business plan do negócio, chegando à conclusão de que seria possível lucrar “uns 10 mil limpos” por palestra.

Não bastante, o procurador chefe da operação sugeriu a elaboração de uma parceria com uma empresa de eventos e formaturas, objetivando alavancar seus negócios. A proposta consistiria no pagamento de comissão a alunos pelo número de vendas de ingressos para suas palestras. E ainda sugere uma alternativa ao modelo de empresa, objetivando apenas burlar as restrições legais, que consistiria na elaboração de um instituto, sem fins lucrativos, mas que pagasse altos valores pelas palestras para os procuradores. Nesse sentido, advertiu que teriam de ver quanto perderiam em termos monetários.

Tal postura e tais diálogos ferem de morte a imagem incólume e moral de alguns membros da força-tarefa da Lava Jato.

O Ministério Público é uma das instituições mais importantes para a manutenção do estado democrático de direito. Afinal, são eles – os promotores e procuradores da República – que representam a nós, cidadãos, quando somos vítimas de um crime. Mais do que isso, são eles o que chamamos de “fiscais da Lei”.

Relativizar a gravidade do teor dessas conversas é relativizar a pequena corrupção, o pequeno delito do dia a dia. É como, para aqueles que assim pensam, entender que a única corrupção a ser combatida é a corrupção dos milhões, e não a corrupção da “caixinha” para o policial rodoviário deixar de multar. Ou, ainda, a pequena sonegação daquele “servicinho sem nota” que você contrata. Ou quando voltamos de uma viagem do exterior com a bagagem lotada de compras nos outlets da vida, os estratagemas para burlar a aduana. “Vamos dividir em várias malas; coloca bastante coisa na mala das crianças”, diz o pai com o peito estufado.

Tudo isso é crime, uns mais aceitáveis, outros não. Mas não deixam de ser crimes. Não se pode dizer “ah, os procuradores trabalhavam muito, têm todo o direito de montar uma empresa para difundir o ideal da Lava Jato ou seus próprios ideais e ideologia em todo o país”. Não, eles não têm esse direito. A Lei, como cansamos de ouvir dessas mesmas autoridades, é uma só. Vale para mim, para você, leitor, para seu candidato, para o candidato dos outros e principalmente para aqueles que têm como incumbência proteger, defender e fazer valer o que está escrito em nossa Constituição Federal.

Artigo publicado originalmente na Revista Época em 15/07/2019.

Foto: reprodução de imagem publicada pela Revista Época – Geraldo Bubniak/Agência O Globo