Por Thiago Gomes Anastácio

Márcio Thomaz Bastos morreu na última semana e fez a passagem envergando e sendo protegido por sua Beca da sorte, a mesma que o acompanhou em centenas de julgamentos pelo Júri e possivelmente em milhares de sustentações orais. Restam-nos os demais cardeais paulistas, os outros três preferiti do cardinalato: José Carlos Dias, Antônio Claudio Mariz de Oliveria e Arnaldo Malheiros Filho (a ordem é cronológica para o articulista não criar prováveis confusões).

Sem dúvida um dos, senão “o” mais importante Ministro da Justiça da história de nossa República, foi ele quem inventou essa nova e celebrada Polícia Federal, dando-lhe liberdade política para agir e salários adequados (quase acabando com a corrupção de funcionários), como também criou o setor de recuperação de ativos do Ministério da Justiça, o setor de Cooperação Internacional da mesma pasta e o Conselho Nacional de Justiça. Não foi pouca coisa para os parcos anos de atividade no Poder Executivo. E são essas suas crias que hoje possibilitam as grandes investigações criminais do país.

Odiado pelos eleitores do partido rival, era respeitado e amigo dos políticos do mesmo partido rival. Enquanto alguns cretinos ofendiam sua memória nas redes sociais, seus rivais políticos o velavam com respeito, admiração e ternura. São coisas do Brasil.

O conheci de perto, mas não sou um dos seus filhos. A primeira vez que ouvi falar em seu nome (ou prestei atenção em seu nome) foi quando passei no vestibular e minha mãe disse: “Mais um querendo ser o Márcio Thomaz Bastos”.

Por circunstâncias da vida meu primeiro estágio, e logo no primeiro ano da faculdade, foi na Procuradoria de Assistência Judiciária do Tribunal do Júri, ali mesmo em que ele brilhara em suas centenas de julgamentos pelo Júri.

É curioso, mas o advogado que muitos admiram por causa dos milhões que recebia, dedicara anos de sua vida defendendo réus miseráveis, sendo nomeado pelos juízes para defendê-los gratuitamente. Se tiver participado de 500 julgamentos pro Bono (não creio que tenha defendido ou acusado em 200 júris pagos), isso significa que dedicou quase três anos de sua vida a réus pobres e estou falando apenas dos julgamentos, sem falar nas preparações dos processos e demais atividades ligadas à defesa. Um Júri toma, no mínimo, dos dias da vida de um advogado – o de preparação e estudo e o do julgamento em si.

Calculo 1.000 dias dedicados aos réus pobres, em casos sem repercussão e de plenários vazios. Ou seja, o advogado cavalgando a defesa, em seu sacerdócio pleno, discreto e essencialmente humano.

Tornou-se mestre no Júri, o que lhe contribuiu com as três principais capacidades a serem aprimoradas por um grande advogado: o domínio do verbo (escrito e falado), a estratégia e a busca incessante do argumento capaz de convencer um juiz.

E do Júri partiu para voos mais amplos, mais republicanos. Tornou-se presidente da Ordem dos Advogados de São Paulo e, posteriormente, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, tendo papel essencial ao tempo da Constituinte.

Estamos nos anos 80. Os dois casos de maior repercussão do país contam com ele como assistente de acusação, respectivamente os afamados casos Lindomar Castilho e Chico Mendes. Vence os dois, sendo que no primeiro supera seu grande mestre, o genial e mitológico Waldir Troncoso Peres. Mas que fique claro: por uma peça do destino é que seus dois julgamentos pelo Júri mais estrondosos tem sua atuação pela acusação. Márcio Thomaz Bastos era um advogado de defesa.

Desde então, de forma discreta, começa a formar o primeiro time de advogados brasileiros, que será completado por uma dezena de outros vindos das asas dos mestres elencados no primeiro parágrafo.

Tudo se passa na mitológica Liberdade nº 65.

Ali ainda estão Leônidas Scholz, um dos mais brilhantes advogados brasileiros, e Paulo Soldá, advogado talentoso, discreto e ferrenho, que herdaram o imóvel do “Velho”, como é e sempre será chamado.

Alberto Toron, líder de classe e advogado multitalentoso, dono de uma inteligência fora de série e talentos oratório e estratégico a fazer jus ao seu mestre.

Sônia Ráo, advogada discreta, dona de uma escrita especial e inteligência defensiva de igual forma; uma das mais hábeis advogadas de crimes de colarinho branco do país.

Dora Cavalcanti, uma das poucas pessoas que tenho medo na minha vida. Minha querida amiga é brava, séria e tratoresca no exercício da profissão. Delicada e fina, transforma-se em um monstro ao defender um cliente.

Luis Fernando Pacheco, que ficou injustamente famoso pelo entrevero que teve com certo ministro do Supremo Tribunal Federal. Dono de cultura e inteligência invulgares é um poeta a serviço da advocacia.

E mais jovens, queridas figuras que herdarão o trono vago.

Augusto de Arruda Botelho, advogado inteligentíssimo, elegante e muito talentoso, que nos últimos anos esteve sempre ao lado do saudoso mestre e na simbiose gerada pelo cotidiano, foi tratado como filho e tratou como pai.

Augusto foi o mensageiro sobre a morte (eram quase 7 da manhã) e também de uma das coisas mais enternecedoras que ouvi, quando saindo de uma reunião me disse: “O Velho te elogiou pra cacete hoje”. Não dormi a noite inteira.

Fábio Tofic, o maior imitador de Márcio Thomaz Bastos que se conhece. Não, não é pejorativo. Fábio é capaz de caricaturas engraçadíssimas do “Velho” e curiosamente, é o que mais se aproxima dos talentos deste, embora seja um orador mais envergado. Curiosamente, tem um nariz muito parecido com o de seu mentor.

Rafael Tucherman, o Woody Allen a serviço da advocacia e sem nenhum medo de errar, o maior escriba que temos. Ninguém escreve como ele, a ponto de, no ginasial, ter escrito uma carta para um jornal e no dia seguinte o imortal Zuenir Ventura ir à escola em que Rafael estudava para conhecê-lo.

João Gabriel Freire, meu antigo vizinho de escritório (naquele Liberdade nº 65) e sobrinho neto do Dr. Márcio. Extremamente culto, leitor voraz, advogado cioso dos mandatos que recebe.

Existem outros. Todos estão profundamente tristes. Um dia contarão histórias de Márcio Thomaz Bastos (acreditem, são centenas e engraçadíssimas) que eternizarão uma figura ímpar e incomum. Em breve revistas serão lançadas com homenagens, textos serão publicados. O homenageado merece.

Escrevo para seus filhos essa carta de louvor e condolências. E como o pai era rico, têm muita gente querendo pegar carona na herança, ousando se dizer descendente, filho e amigo. Isso mostra que o morto era mesmo importante.

Morreu nosso melhor argumentador, nosso René Floriot, célebre advogado francês alcunhado de “o semeador de clarezas”.

E não há argumentos que vençam a dor que esses amigos estão sentindo. Nem o Velho seria capaz disso.

*Thiago Gomes Anastácio é advogado criminalista, sócio do Chammas Anastácio Advogados e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Texto publicado originalmente no Jota.