Por Augusto de Arruda Botelho e Guilherme Pimenta
Para combater a corrupção, é preciso suprimir direitos e garantias?
S.K, empresário, tem um próspero negócio na cidade de São Paulo. Ele sonega um pouquinho de imposto, nada muito grave (todo mundo fecha aquele servicinho sem nota, não é mesmo?). No final da década de 90, S.K abriu uma conta bancária não declarada nos Estados Unidos e mandou uma quantia pequena (para os padrões dele) para tal conta. Ele usou os serviços de L.M.O, seu amigo do colégio que há tempos enveredara para a profissão de cambista de valores. O famoso doleiro (tooodo mundo em São Paulo tem um amigo doleiro). Para finalizar, S.K não registra todos os seus funcionários corretamente e não recolhe a totalidade dos impostos previdenciários.
M.H.M.F, socialite, não trabalha. Pensando bem, ela trabalha e muito. Tem uma agenda repleta de recepções, festas, eventos beneficentes e jantares de gala. M.H.M.F, ainda cuida da casa da fazenda, da casa na praia e recentemente terminou de decorar uma casa em um condomínio que fica apenas a uma hora de São Paulo. Ela também se ocupa muito fazendo bazares. Funciona mais ou menos assim: ela junta um grupo de amigas e todas fazem uma limpa nos respectivos guarda roupas. De lá saem Hermés, Chanel, Dior e por aí vai. Elas não usam mais, sabe? Então o grupo de amigas organiza uma disputada venda na casa de alguma delas. Vendem tudo em uma tarde. Final do expediente, caixa fechado, as amigas destinam parte da renda para uma instituição de caridade e o resto, pluft, dividem e embolsam. Nota fiscal, imposto? Magiiiina. Na última edição elas tiveram um problema, o evento bombou demais. Muitos compartilhamentos no Facebook e no Instagram chamaram a atenção de um fiscal da Secretaria da Fazenda e ele resolveu dar um pulinho no bazar. Graças a Deus tudo foi resolvido de forma rápida. O fiscal saiu de lá com uma recheada sacola de presentes para sua amada amante.
A.M, engenheiro, tem uma construtora de médio porte no Rio de Janeiro. Não é, digamos, um empreiteiro desses que a gente fala de boca cheia, mas tem um bom negócio. Constrói casas populares, hospitais e escolas nos subúrbios do Rio e tem até algumas obras na capital. S.A.M sempre pagou bola para Vereadores e Deputados, é a praxe. Se não tiver uma caixinha, a chance de ele ganhar uma obra é próxima de zero. S.A.M também faz uns favores. Bastou ele ganhar um contrato que começa a chover pedido de ajuda. É passar uma mão de tinta na casa do Prefeito, reformar a calçada da casa do Vereador, fazer um píer no pesqueiro do Deputado…
J.O.P, empresário do ramo de restaurantes, está desolado. Seu filho, M.A.O.P, de apenas 22 anos, se envolveu num grave acidente automobilístico. Saiu de um bar após consumir quatro cervejas e duas caipirinhas, perdeu o controle de seu carro e atingiu outro motorista. Graças a deus, apesar de ter ficado hospitalizado por uma semana, seu filho está bem. Mesma sorte não teve o outro motorista, já que faleceu ainda no local da batida. Agora, J.O.P reza para que o caso do filho não caia nas mãos de um Promotor linha-dura, daqueles que já saem oferecendo denúncia por homicídio doloso e pedindo prisão preventiva para proteger a ordem pública. Se isso acontecer, J.O.P precisará pedir uma ajudinha àquele amigo que tem uns contatos no Tribunal.
M.A.A, empresária casada com um funcionário público, herdou de sua falecida mãe uma polpuda conta na Suíça. Para trazer o dinheiro para o Brasil, M.A.A simula uma doação para o seu filho, que mora em Paris. O rapaz, ao mesmo tempo em que recebe o dinheiro em sua conta na França, usa o saldo da conta que manteve aberta no Brasil para reembolsar a sua mãe, também como se de doação se tratasse.
P.G.G, publicitário, é dono de uma agência de sucesso. 80% de seus empregados não são registrados. Como dizem no meio, são todos “PJ”. Só que ultimamente isso tem ficado meio complicado. P.G.G então resolveu de uma vez por todas o problema de forma bastante simples: confeccionou uma baciada de contratos de prestação de serviço (consultoria, prospecção de novos negócios, análise de cenário, etc) e assim remunera seus empregados. Alguns estão com uns probleminhas pessoais, mas P.G.G conseguiu resolver também. Tem um cara no RH que conhece um cara que vende nota. Bom, a sala do cafezinho da agência do P.G.G tem dias que parece a Feira de Acari.
Por último, mas não menos importante, temos o A.M.C, advogado de uma grande banca de São Paulo. A.M.C atende apenas clientes estrangeiros e cobra deles por hora. A.M.C tem um cliente tão rico quanto desagradável, e então resolve cobrar a mais dele. Para isso ele apresenta uma cobrança (eles chamam isso de Time Sheet) com 22 horas trabalhadas. Na verdade, ele trabalhou 10 horas, e o restante são reuniões que nunca aconteceram, conference calls nunca feitas e, de quebra, uma petição que sabe não ter qualquer utilidade, só para engordar seus honorários.
Todos os personagens acima relatados têm uma coisa em comum: cometem, em tese, crimes. Variados crimes, inclusive. Homicídio, sonegação fiscal, corrupção, lavagem de dinheiro, frustração de direito trabalhista, evasão de divisas, estelionato etc.
E todos, obviamente, estão sujeitos a ter que, em algum momento, prestar contas à Justiça Criminal. Contratarão advogados, produzirão provas, apresentarão recursos, tudo bastante normal no dia a dia daqueles que trabalham na área.
Fica aqui, portanto, minha sugestão: antes de aplaudir os abusos ao Direito de Defesa ocorridos no curso da operação Lava Jato, antes de assinar sem ler as pomposas 10 Medidas contra a Corrupção, antes de achar que “bandidos” têm muitos recursos para protelar uma condenação e que então a recente decisão do STF está mais do que certa, coloque a mão na consciência, reflita um pouco. Será que, sob o louvável argumento de que precisamos moralizar o país e acabar com a impunidade, precisamos mesmo atropelar direitos e garantias fundamentais que há pouco tempo – e a duras penas – conquistamos?
Lembrem-se: pau que bate em Chico pode bater em S.K, J.S.S, M.H.M.F, S.A.M, J.O.P, M.A.A, P.G.G e A.M.C. Os direitos e garantias que hoje você ajuda a enfraquecer são os mesmos de que você, seu parente, seu amigo ou seu vizinho certamente precisarão um dia para ter um julgamento minimamente justo.
Texto publicado originalmente no Jota.