Por Hyndara Freitas
Há dúvidas se governador poderia incorrer, em tese, em obstaculização da Justiça e violação de sigilo funcional
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) disse nesta quarta-feira (30/10) à imprensa que ficou sabendo que o porteiro do Condomínio Vivendas da Barra havia mencionado seu nome na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco por meio do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC). De acordo com Bolsonaro, Witzel lhe teria dado essa informação no dia 9 de outubro. Em seu Twitter, o governador negou a informação.
Para advogados ouvidos pelo JOTA, um eventual vazamento de informações de investigação sigilosa a autoridades deve ser investigado – mas eventual acusação de ilicitude recairia sobre quem vazou a informação. Os especialistas apontam que episódios de vazamentos de inquéritos sigilosos se tornaram rotineiros, mas que raramente são investigados.
“Dia 9 de outubro, às 21h, eu estava no Clube Naval no Rio de Janeiro, quando chegou o governador Witzel […]. Chegou perto de mim e falou o seguinte: ‘O processo tá no Supremo’. Eu falei: ‘que processo?’ ‘O processo da Marielle.’ ‘Que que eu tenho a ver com a Marielle?’ ‘O porteiro citou teu nome.’ Ou seja, Witzel sabia do processo, que estava em segredo de Justiça. Comentou comigo”, afirmou o presidente a jornalistas.
Em seu Twitter, Witzel disse: “Fui magistrado por 17 anos e sempre prezei os princípios constitucionais. Jamais vazei qualquer tipo de informação, nem como juiz, nem como governador. Lamento que o presidente, num momento talvez de descontrole, tenha feito acusações contra a minha atividade como governador. (…) Não manipulo o Ministério Público nem a Polícia Civil, isso é absolutamente contrário às instituições democráticas. No meu governo, a Polícia Civil é independente. E o Ministério Público tem e sempre terá a sua independência”.
Para o advogado criminalista Conrado Gontijo, doutor Direito Penal e sócio do Corrêa Gontijo, a declaração de Bolsonaro de que Witzel teria lhe adiantado a informação, se verdade, “é um dado grave porque o inquérito tramita em segredo de justiça e nem o governador, nem o presidente deveriam ter ciência a respeito das diligências que são realizadas”.
“Há aí algo a se investigar, a obrigação de sigilo é do funcionário público que conduz a investigação e aparentemente, em algum momento, esse dever de resguardar o sigilo pode ter sido violado porque não era, para que ninguém além daqueles que estão no contexto da investigação”, opina Gontijo.
A visão do advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho é semelhante. “Se você divulgar informação sigilosa de um processo, tem um crime específico disso que é o artigo 325 do Código Penal, mas pode ter uma discussão aí de se revelar ou não. A obstrução de justiça é uma previsão legal ainda muito pouco analisada pela doutrina e pela jurisprudência no país”, explica.
“A mera divulgação de um fato não caracteriza, necessariamente, obstrução de justiça. Porque a obstrução precisa ter o interesse doloso de de alguma forma prejudicar o bom andamento de uma investigação. Então não é qualquer revelação de dado sigiloso. O ato que você produz, seja este de divulgar uma informação, seja de destruir provas, esse ato precisa ser praticado com o interesse específico de realmente obstruir uma investigação”, opina.
Por isso, para Botelho não é possível afirmar que um suposto vazamento de informações por parte do governador do Rio configuraria algum crime. Quem estaria obrigado a respeitar o sigilo funcional — cuja violação é tipificada no artigo 325 do Código Penal — seriam promotores e delegados, por exemplo.
O advogado Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, diz ter dúvidas se o sigilo funcional não se estenderia ao governador. “O exercício da função da polícia no plano administrativo é uma competência desconcentrada da competência do governador. Em geral os deveres administrativos se transferem”, afirma Serrano. “A minha dúvida é se a transferência se daria no plano penal, mas, de qualquer forma, me parece que sim. E caso comprovado o fato pode ser que fique configurado, em tese, obstrução de Justiça”.
“É obrigação do Procurador-Geral de Justiça do Rio de Janeiro investigar esse fato, que foi anunciado em público pelo presidente”, diz. “Por outro lado, Witzel poderia processar Bolsonaro no mínimo por difamação. Não se pode afirmar que um governador do estado cometeu uma conduta em tese ilícita sem sofrer consequências”.
Para um procurador do Ministério Público Federal ouvido reservadamente pela reportagem, trata-se de uma informação grave se o governador tiver realmente tido acesso ao inquérito, pois apenas a acusação. O juiz e as defesas das partes envolvidas deveriam ter acesso. “Um suposto vazamento mereceria uma investigação para avaliar se houve interferência externa”, diz.
Na noite da última terça-feira, o Jornal Nacional publicou reportagem na qual informa que o porteiro do Condomínio Vivendas da Barra implicou o presidente Jair Bolsonaro em depoimento oferecido no âmbito das investigações que apuram a morte da vereadora Marielle Franco. De acordo com a reportagem, a Polícia Civil do Rio de Janeiro apurou que, no dia do crime, um dos suspeitos, Élcio Queiroz, disse que iria à casa 58 do Condomínio Vivendas da Barra, de propriedade de Jair Bolsonaro (PSL), quando na verdade foi para a casa 66, onde morava Ronie Lessa, PM reformado preso pela suspeita de ser o autor dos disparos.
Com a citação, representantes do Ministério Público do Rio de Janeiro acionaram o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, para saber se poderiam dar continuidade às investigações. A PGR também foi acionada e o fato foi arquivado.
Como um de seus últimos atos antes de deixar o cargo de procuradora-geral da República, Raquel Dodge pediu a federalização das investigações sobre a morte de Marielle e denunciou cinco pessoas no Superior Tribunal de Justiça por obstrução de justiça. Os denunciados são Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro; o ex-agente da Polícia Federal Gilberto Ribeiro, o policial militar Jorge Ferreira; a advogada Camila Moreira Lima Nogueira e o delegado da polícia federal Helio Khristian.
Segundo a PGR, os cinco atuaram para desvirtuar a linha de investigação da Polícia Civil do Rio de Janeiro para impedir a localização dos mandantes do crime. Dodge requisitou que a investigação sobre os mandantes seja transferida para a PGR, enquanto a investigação sobre os executores continua com o Ministério Público Estadual. O STJ ainda não decidiu sobre a federalização.
Texto publicado originalmente no Jota.