Por Augusto de Arruda Botelho e Ana Carolina Albuquerque de Barros
Resposta ao artigo ‘TÜV SÜD e Vale – deslizes individuais ou desvio organizacional?’
Militar na advocacia criminal é o exercício de se manter diuturnamente na batalha pela preservação das garantias de toda a sociedade. Nossa luta e o pior, a grande maioria de nosso tempo, é perdido para fazer se aplicar a Lei e os princípios norteadores de nossa Constituição.
Portanto, causou surpresa o artigo publicado aqui no JOTA com o chamativo título “TÜV SÜD e Vale – deslizes individuais ou desvio organizacional?”, de autoria de Maria Eugênia Trombini e Mário Helton Jorge Jr., em que a presunção de inocência foi, sem cerimônia alguma, ignorada. E não apenas isso, infelizmente.
Vamos lá: no meio do turbilhão de fatos relacionados ao caso – como as trágicas consequências do rompimento, os tortuosos caminhos que as investigações têm assumido, e até mesmo a guerra de força declarada ao STJ pela 7ª Câmara Criminal do TJMG, que mandou prender 5 pessoas com base em um decreto de prisão temporária já expirado – diversos são os temas que despontam como suscetíveis de análises e discussões. Isso é normal e sadio em uma sociedade democrática.
O que não é sadio e, portanto, faz mal à saúde da Justiça e do Direito, é a precipitação, o apontamento de culpados sem a devida investigação, o alardeamento de conclusões sem qualquer embasamento e toda sorte de expedientes ao gosto do populismo penal.
Já antecipo que esta resposta em forma de artigo não se presta a discutir o caso, conduta que segundo a Lei seria antiética (ética essa ignorada pelos subscritores do texto aqui respondido). Muito menos se presta a rebater, uma a uma, as diversas informações descontextualizadas que constam no artigo.
Mas algumas considerações devem ser feitas, notadamente sobre quão temerário é emitir conclusões precipitadas em relação a investigações que não se teve integral acesso.
A pretexto de analisar na prática uma discussão teórica, os autores, pesquisadores de renomada instituição de ensino, incorreram em um erro que se poderia chamar de metodológico: elegeram como hipótese de análise um caso em andamento. Ou seja, ousam dizer o direito sobre fatos ainda incertos, mas com anseios atípicos, apresentaram “contundentes” conclusões.
A complexidade do caso é tamanha que sequer foi definida uma autoridade competente para as investigações.
Ponto um: os mesmos fatos são investigados, concomitantemente, pela Polícia Federal e pela força tarefa estadual, em que atuam Polícia Civil e Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Por segundo, não se sabe ainda, sequer, qual evento teria desencadeado o rompimento da Barragem I. São inúmeros os relatórios, documentos, estudos e análises em andamentos e em processo de conhecimento pelas autoridades.
Por se tratar de matéria de complexa engenharia de estruturas, os profissionais da Justiça precisam do amparo interdisciplinar da engenharia, da geotecnia e de tantas outras áreas, para entender e avançar, cada qual em seu mister, nas investigações e compreensões acerca dos trágicos fatos.
Mas ainda assim, os autores, exatamente como tem feito parte das autoridades envolvidas na investigação, partindo da inaplicável responsabilidade objetiva, fiaram-se em conclusões mais palatáveis ao clamor social, apontando um nexo de causalidade entre eventos que sequer estão ainda, por provas técnicas, relacionados.
Presumiram que regras formais de conduta foram ignoradas e concluíram que a observância dessas teria prevenido o rompimento, esquecendo-se, no entanto, que em contexto algum, a existência e a observância de regras é garantia de neutralização de risco, sobretudo quando se tratam de atividades que possuem um risco inerente em si. E foram muito além.
Não só responsabilizaram os indivíduos investigados, como buscaram, a partir de “evidências sociológicas”, estabelecer quais os motivos que teriam levado estas pessoas a “deslizarem”.
E que evidências seriam essas? Ao ver dos pesquisadores, o fato de os investigados se conhecerem demostraria que, ou os indivíduos buscavam ganhos pessoais ou agiram conforme os objetivos das organizações, descartando uma série de outras possibilidades plausíveis para a equivocada, absurda e precipitada premissa do artigo.
Sem aprender com os erros do passado, os autores se valeram de um organograma feito em algum programa semelhante ao Power Point para demonstrar as relações existentes entre os funcionários da Vale e da TÜV SÜD, a indicar a existência de interação entre as empresas.
No entanto, esqueceram que o setor em que as empresas se encontram é extremamente concentrado em razão da peculiaridade das atividades envolvidas.
Essas “escusas interações”, que seriam, segundo o artigo, motivo de parcialidade técnica, referem-se, única e exclusivamente, a interações profissionais e acadêmicas. O absurdo é tal que se questionou o fato de que determinados indivíduos teriam trabalhado para VALE antes mesmo de trabalharem para a empresa alemã. Sinceramente, não consigo conceber como experiência específica na área de atuação pode comprometer, a priori, a idoneidade de um profissional.
Parcial é o organograma das “escusas interações” apresentado pelo artigo, já que deixou de mencionar uma série de empresas que, assim como a alemã TÜV SÜD, não só prestam serviços para a VALE relativos às barragens e mineração, como também interagem entre si nos mesmos moldes.
Só faltou no texto a já célebre frase “não temos prova, mas temos convicção”…
Não tiveram os autores o cuidado de conhecer um pouco do universo em que se insere o objeto de análise deles, antes de emitirem quaisquer conclusões.
E nesse aspecto, é curioso notar que as investigações a que eles aludem são sigilosas! Daí me pergunto: com base em que emitiram todas essas conclusões? Quais os documentos que tiveram acesso? Quantos depoimentos foram lidos? Tiveram acesso a algum documento? Ou a análise deles é pautada no que foi divulgado pela imprensa?
Aqui retorno à presunção de inocência. Me recuso a tê-la por antiquada, ultrapassada ou letra morta. Muito menos acredito que ela possa ser ignorada. É preocupante que pesquisadores do Direito Penal a tenham esquecido no afã de colocarem à prova as teorias que estudam.
É óbvio que o assunto tratado é de suma importância. É óbvio que é necessário estudar os desvios organizacionais. Há tempos que o Direito Penal não é ramo do direito que lida com bens jurídicos clássicos. As contribuições advindas de tais estudos são essenciais, seja para a teoria, seja para a prática.
Mas será que para atingir este fim é preciso sacrificar garantias? Sobretudo, quando o Brasil atravessa um momento extremamente delicado em sua história, em que cada vez mais soluções imediatistas são enaltecidas em detrimento do planejamento a longo prazo; em que garantias conquistadas tardia e arduamente por nossa sociedade são ameaçadas.
No campo do Direito Penal, recrudescimento é a palavra de ordem. Será mesmo, que além de termos de nos posicionar firmemente em relação a todos estes obstáculos, teremos agora de também nos posicionarmos uns contra os outros? Academia e advocacia até agora sempre andaram lado a lado no que tange ao campo do Direito Penal. Espero que não soltemos as mãos.
Texto publicado originalmente no Jota.