Por mais trabalhoso que seja, o Supremo Tribunal Federal tem o dever de dar a todo cidadão a mais ampla defesa possível

Por Augusto de Arruda Botelho e Gustavo Mascarenhas

O provérbio “Nem tudo que reluz é ouro” define bem os dias que vivemos no direito penal brasileiro. Num cenário em que as mudanças legislativas têm trazido ao país normas restritivas de direitos e extensivas de deveres (muitas vezes com interpretações enviesadas de leis tardiamente importadas, como no caso da colaboração premiada), o Supremo Tribunal Federal deu um importante passo na direção das garantias fundamentais ao decidir, no fim de agosto, que o habeas corpus é “ação nobre sem qualquer limitação na Constituição” e, por isso, pode ser usado para questionar ato de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

É que, quando se trata da liberdade alheia, não pode existir um dono da bola, que mande no jogo e seja o único capaz de rever se fez falta ou não. E é mais ou menos isso o que diz a súmula 606 do STF: se o relator de um processo pode ter errado em sua decisão, não cabe ao restante do tribunal a análise, por via de habeas corpus, desse possível erro. Em outras palavras, contra um ato de apenas um ministro do Supremo nada se pode fazer. Se estiver errado, errado ficará.

Pode parecer “discurso de advogado”, mas todo ser humano erra, até ministros da mais alta Corte. Prova disso é que o ministro Marco Aurélio, no julgamento que tratava da superação mento que tratava da superação dessa regra, afirmou que “se arrependimento matasse, seria um homem morto”. Ele se referia à posição que tomou, anos atrás, em desfavor do habeas corpus. Para evitar um acúmulo de recursos , o STF preferiu adotar critérios para admiti-lo — e o entendimento de Marco Aurélio, diante de um caso concreto, foi o guarda-chuva dessa jurisprudência.

Mas de tão nobre que é, o habeas corpus foi capaz de convencer até quem o dificultou um dia. Por mais trabalhoso que seja, a Corte tem o dever de dar a todo cidadão a mais ampla defesa possível.

Parece meio sem sentido afirmar isso num país que esquece pobres encarcerados por roubos famélicos ou por portar menos de um grama de maconha, mas que, ao mesmo tempo, aplaude delatores e mentirosos contumazes como se fossem heróis. Só que tal lembrança é comezinha da realização da Justiça: o direito à defesa é fundamento da democracia.

Daí a importância da decisão, ainda que incidental e sem a repercussão geral desejada. O STF decidiu que nenhum de seus juízes poderá ter a última palavra de maneira individual. Não existe dono da bola: o jogo é coletivo.

O Estado segue tendo o importante papel de investigar e julgar, mas deve fazê-lo de forma técnica, respeitando sempre e sendo mesmo a própria expressão da defesa do direito de defesa. O jogo, neste caso, não é entre times de bons ou de maus. Não há ídolos ou antagonistas. Trata-se de preservar a democracia.

Texto publicado originalmente no jornal O Globo.